Miséria da política, política da miséria
(inspirado em uma aula da prof. J. M. Gagnebin sobre Paul Ricoeur; ela, evidentemente, não tem culpa de nada)
Parto de uma distinção filosófica entre existir e ser. Existir é algo ligado às necessidades de sobrevivência: alimentação, vestuário, abrigo, saneamento. Ser é algo mais profundo, humano, cultivado quando as necessidades da existência foram e são continuamente supridas. Feita a distinção, é possível afirmar: o desejo ético brota mais intensa e livremente quando há um desejo mais intenso por ser mais plenamente. Ser, não existir. Isso porque em condições de vida nas quais a luta pela existência se dá de forma imediata, como preocupação diária, sobra pouco tempo para o cultivo do ser. Os escravos gregos não estudavam filosofia...
Quando pensamos em Cabreúva, vemos que a maior parte da população (sobretudo a que habita o distrito do Jacaré) ainda se vê às voltas com a necessidade de garantir a existência. Sobra pouco tempo para o cultivo do ser, e, consequentemente, da preocupação com o desejo ético, o desejo por uma vida humana mais cultivada, mais profunda, com densidade espiritual. Daí abundar nos bairros mais pobres casos e mais casos de polícia, desavenças entre vizinhos, tráfico de drogas. Não há aqui nenhuma culpabilização dos pobres. Na mesma situação, qualquer pessoa de posse produziria realidades semelhantes.
E seria um grande equívoco reduzir a falta de desejo ético aos pobres. São muitos os que, mesmo tendo que lutar pela existência diária, mostram, não obstante, uma humanidade íntegra e ética. Mas o equívoco também se daria porque basta observar os ricos e os poderosos (os dois termos são (quase?) sinônimos) e perceberemos que também lhes falta desejo ético (claro, há exceções. Mas, como disse, são exceções). Por que isso acontece? Porque, nesse caso, estamos diante da miséria espiritual, do egoísmo, da vida que, ainda que tenha conseguido ultrapassar com mais folga as demandas necessárias à manutenção da existência, não se preocupa com o cultivo do ser.
Para uma mudança significativa em Cabreúva, urge que estruturas que garantam o cultivo do ser sejam criadas. Ninguém tem cabeça para pensar em coisas abstratas relativas ao ser quando as questões concretas da existência batem à porta: a demora para o exame, a dificuldade com o transporte, a falta de vagas na creche, a poeira que entra pela janela da casa...
Como seria bom ver em Cabreúva uma política mais nobre, mais incisiva na criação dessas estruturas, menos ligada a interesses de grupos. Como seria bem ver os cargos públicos ocupados na base do mérito e da capacidade técnica, e não da indicação política. Como seria bom ver debates sobre questões mais decisivas à vida da cidade na Câmara Municipal!
Não se pense que este artigo critica a atual gestão. Ele quer ser mais do que isso (mesmo porque reprova com igual veemência as táticas eleitorais do principal candidato da oposição). É uma crítica à forma geral de se fazer política, que não mudaria, em sua essência, com a mera mudança de nomes, ainda que a discussão ao redor dos nomes seja muito importante (e ainda que não se possa, sob risco de injustiça, dizer que todos os políticos cabreuvanos são iguais; há, como sabemos, políticos e políticos...). Ele quer chamar a todos a uma visão mais ampla, menos periférica; mais nobre, menos egoísta; mais ousada, menos conformada com as coisas tais como estão dadas.
Na atual situação, abunda a política da miséria, em que a força política é usada para pequenos favores à população que, em luta diária pela existência, não tem alternativa senão ir atrás desses favores (uma consulta, um exame, um transporte, uma cesta básica, o pagamento de uma conta de luz etc). Esse cenário favorece a miséria da política, pois esta é reduzida a ações de pouco alcance e, o principal e pior, não altera em absolutamente nada as condições estruturais atuais.
Conclamaria a todos os vereadores a um gesto de desejo ético: abram mão desses gestos assistencialistas, e usem todos os seus esforços para que uma mudança estrutural seja implementada. A todos que vierem pedir esses pequenos favores, digam que devem freqüentar as sessões da Câmara, que devem reivindicar, que devem se informar sobre partidos políticos, critérios de votação, projetos em tramitação. Não se deixem seduzir pela reeleição, porque ela virá se vocês optarem pela forma mais nobre e profunda de fazer política (e, se não vier, saibam que cumpriram com brio (e ética!) o seu papel).
Este artigo conclama a um pacto por Cabreúva. Ele não prega uma ingênua ação suprapartidária, em que os grupos políticos entrariam todos em uma utópica harmonia e todos pensariam da mesma forma, teriam a mesma prática e o mesmo discurso. Ele sabe que política é luta de interesses, é conflito, é jogo de (e principalmente pelo) poder. Mas sabe também que a realidade municipal pode melhorar, se a miséria da política e a política da miséria forem substituídas pela ética na política a partir de uma política da ética.